Entrevista a Marina Silva: “Impeachment não é golpe e deve ser discutido logo”.

Em entrevista a ÉPOCA, Marina disse que, “estamos num poço sem fundo. O presidencialismo de coalizão no Brasil, virou o presidencialismo da confusão e da desmoralização”.MARINA1Marina Silva, da Rede Sustentabilidade, afirma que seu partido debaterá com isenção e responsabilidade, “sem acordos e sem barganha para blindar o Executivo e o Legislativo”, o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Mas acredita que ainda não há razões suficientes para afastar a presidente no texto acolhido pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e escrito pelo jurista Helio Bicudo, um dos fundadores do PT. Marina apoia a continuidade das investigações no TSE sobre a legitimidade de toda a chapa governamental. “O que pesa sobre o PT também pesa sobre o PMDB do vice-presidente Michel Temer. Ambos os partidos possuem representantes condenados, presos ou acusados de corrupção e desvio de verba pública.” Para Marina, “estamos num poço sem fundo. O presidencialismo de coalizão no Brasil virou o presidencialismo da confusão e da desmoralização”.

Com um legado de quase 20 milhões de votos na eleição do ano passado e com 21% da preferência dos brasileiros para as eleições presidenciais de 2018, Marina falou longamente a EPOCA, às vésperas de ir a Paris para a Conferência do Clima. Usava um colar que ganhou dos xavantes no Mato Grosso. “Esta é uma versão feminina, eu estava usando antes a maior, masculina e os índios me fizeram trocar por esse outro, mais delicado.” Marina costuma dizer que seu corpo frágil não deveria assustar ninguém. Mas parece que assusta. Deve ser pelo discurso da ética, aliado a uma serenidade estoica, sem nenhum resquício de vingança ou ressentimento.

EPOCA – Em sua opinião, havia razões suficientes no texto do jurista Hélio Bicudo, um dos fundadores do PT, para abrir um processo de impeachment contra a presidente Dilma?

Marina Silva – Os fatos que estão ali, no texto, já eram de conhecimento da Rede e a única novidade é que Eduardo Cunha, presidente da Câmara, resolveu acolher. Ainda não são suficientes os argumentos para um afastamento, mas debateremos com independência e isenção, sem barganhar com ninguém, sem nenhum acordo. O fundamental é dar apoio a todas as investigações de corrupção e desvios, feitas pelo Ministério Público e pelo TSE.

EPOCA – A senhora acha um erro ter sido acolhido o processo de impeachment?

Marina – Não estamos contestando o acolhimento. O impeachment não é golpista, é um instrumento previsto na Constituição. Obviamente no decorrer do processo firmaremos nossas posições. Achamos que o mais importante é que o processo que está no TSE seja devidamente debatido. Se o PT tem um líder do governo preso e um tesoureiro preso, se o PMDB tem um presidente da Câmara e um presidente do Senado igualmente denunciados, deveríamos pensar na inviabilização da chapa como um todo. Não adianta pensar que as denúncias que pesam sobre o PT não pesam também sobre o PMDB, ambos estão envolvidos em denúncias de corrupção.

EPOCA – É benéfico para o Brasil que a irresponsabilidade fiscal, resultando numa crise econômica profunda, seja reconhecida pelo país como um compromisso moral do presidente da República, passível de ser punido até com o afastamento se não for cumprido?

Marina – O descumprimento às regras referentes ao Orçamento público é grave. Essa é uma lei que deve ser respeitada e cumprida, mas que foi implementada após a Constituição. Juristas discordam se a irresponsabilidade fiscal deve ou não ser considerada justificativa para se afastar um presidente. Isso está suscitando dúvidas. Queremos dirimir todas as dúvidas. Porque um impeachment não se resume a uma tecnicalidade; também é um processo político. Nossa plataforma de sustentação é a Constituição.

ÉPOCA – O fato de o processo de impeachment ter sido aceito por um presidente da Câmara sem credibilidade e ameaçado de cassação deslegitima, por si só, o processo?

Marina – O processo de impeachment, já disse, é legal. Cunha está no exercício do cargo e o encaminhou do ponto de vista legal. Não importam aí seus motivos por trás da atitude. Quanto a ser legítimo, o que é diferente de ser legal, acho que tanto o Executivo quanto o Legislativo, que se acusam mutuamente hoje de chantagem, carecem de legitimidade.

ÉPOCA – A seu ver, o recesso parlamentar deve ou não ser suspenso para que se analise sem demora o que está na mesa, nos corações e nas mentes dos brasileiros?

Marina – A minha posição pessoal ainda não é posição da Rede. Tenho tendência a evitar a protelação. Nós não podemos expor o país a uma situação indefinida, a prejuízos no grau de investimento que podem ser irreversíveis. O debate deve ser feito da melhor forma possível para se ter todos os elementos de acordo com a responsabilidade que esse processo exige. Temos uma faca de dois gumes. Se por um lado o imediatismo tira o país de um maior desgaste econômico e social, do outro lado o encurtamento pode trazer prejuízos democráticos, se o debate for açodado e intempestivo. A sociedade precisa ter um tempo para processar tudo isso.  Seja para condenar ou inocentar, precisamos no momento de serenidade para pensar no que é melhor para o Brasil e sua população.

ÉPOCA – O PT pode ser responsabilizado pelas prisões de seus representantes?

Marina – Sem entrar no mérito do dolo praticado, o partido tem responsabilidade com os quadros que tem. E se um senador da República comete ilegalidades irrefutáveis como o senador Delcídio do Amaral e como tesoureiros também, o partido não pode achar que não tem nada a ver com isso. Eu confio no trabalho da Justiça, da Polícia Federal e do Ministério Público. Tenho dito desde o início e tenho pago um preço alto por isso, que não se deveria ter uma ansiedade tóxica pelo impeachment da presidente. Impeachment não se fabrica. Ele se explicita em função das razões legais que o amparam.

ÉPOCA – Por que não há mais manifestações nas ruas?

Marina – As manifestações foram antecipatórias. Já diziam isso aí. Queremos o combate a corrupção. Queremos que o Brasil preste bons serviços. Agora, no ponto a que chegamos, não há uma saída fácil. Até bem pouco tempo eu achava que estávamos no fundo do poço. De duas semanas para cá, me sinto como se estivéssemos num poço sem fundo. Quando você cai num buraco, sente uma vertigem. Você procura uma borda para se segurar. Precisamos criar uma superfície de sustentação. Essa borda se cria buscando os homens e mulheres de bem mais preocupados com a nação do que com eleições. Temos dois trilhos: o das investigações independentes com total apoio para explicitar e punir. E o trilho dos rumos. Reconhecer erros atuais e históricos, criando uma agenda independente dos partidos. Só discutimos o ajuste fiscal. Precisamos discutir o ajuste Brasil.

ÉPOCA – Quais são seus objetivos com a Rede nas próximas eleições?

Marina – Se você me perguntar nas próximas gerações, fica mais fácil falar (sorrisos). Nas próximas eleições, vou ter mais dificuldade. A Rede é uma tentativa, um experimento, como tantos no mundo hoje, de respeitar o novo sujeito político e as novas estruturas de poder não viciadas em se perpetuar. Pensamos na nação e não nas eleições, pensamos em programas de longo prazo para o curto prazo político. E não em programas de curto prazo para alongar o prazo no Poder. Vemos experiências parecidas na Índia, na Argentina, na Itália. Por isso não fizemos uma escolha pragmática, de recrutar deputados, para ter 20, 30, pensando em fundo partidário, tempo de televisão. Vamos participar de eleição? Onde for possível, legitimamente. Na maioria das cidades, não teremos candidatura.

ÉPOCA – A senhora se considera a personificação da terceira via?

Marina – Todo título autoimputado deve preocupar o político, ele deve verificar sua legitimidade e sua validade. Os brasileiros não me quiseram no segundo turno no ano passado. Mesmo assim, mais de 20 milhões de pessoas votaram em mim, passando pelo fogo, pela água e pelos ares. Não fiz de tudo para ganhar. Dilma sim, fez tudo para ganhar, até mesmo convencer que o país não vivia uma insolvência, uma situação pré-falimentar. Ela ganhou perdendo. Mas meus eleitores e eu continuamos a achar que é possível ganhar ganhando. Converso com os dois legados, do Lula e do Fernando Henrique. Devemos institucionalizar as conquistas e não repudiá-las.

ÉPOCA – Seu discurso costuma ser de uma otimista com o Brasil, mesmo no meio da crise.

Marina – Sabe por quê? Porque já temos 50% de tudo que é necessário para o Brasil dar certo. Ele é gigante por sua própria natureza. Precisa se tornar gigante pela natureza das decisões que a gente toma. Não decisões a curto prazo para alongar o prazo dos políticos. Mas decisões de longo prazo no curto prazo que temos.

ÉPOCA – O PT tem salvação?

Marina – A situação está tão seria e dramática que prefiro gastar minha energia para saber se a economia tem salvação. Não foi catástrofe, nem guerra, foi por incapacidade. Agora é saber como a gente salva o Brasil e a democracia. E como recupera conquistas como a estabilidade econômica e a inclusão social. O Brasil poderia estar liderando um novo processo. Qualquer um que colocar sua pessoa ou seu partido na frente do país não entendeu nada o que está acontecendo. Somos um polo estabilizador da América Latina, um continente com um grave problema na Venezuela. Quando se é democrata, deve-se saudar a alternância no poder e isso me deixou feliz na Argentina. Não se pode ter um projeto de poder que só funciona comigo. É a escolha de Sofia, ou é meu projeto maravilhoso ou é a democracia. Temos de ter instituições que garantam ganhos da sociedade quando se elegem partidos diferentes, com outras ideologias. No Brasil tivemos uma experiência muito interessante na transição do FH para o Lula. Ali foi uma sinalização do que poderia ser o início de um caminho virtuoso, onde se reconhecem conquistas alheias.

ÉPOCA – O que deu errado?

Marina – Infelizmente a ideia de pensar um projeto de 20 anos no poder nos levou ao reducionismo e a uma polarização absurda. Foi um erro histórico, tanto do PT quanto do PSDB. São dois partidos da social democracia – um ligado aos movimentos  populares e a uma parte da intelectualidade, outro ligado ao empresariado e a uma parte da intelectualidade. Ao ganhar o poder, buscaram alianças, para governar, muito mais incompatíveis com sua história do que se tivessem feito um movimento com mais sentido. O que faz mais sentido? FHC dialogar com Lula ou com Antônio Carlos Magalhães? Depois de uma transição respeitosa, democrática e republicana, o que era mais coerente? Um diálogo de Lula com FHC ou com Sarney, Collor e Renan? A polarização nos levou a um ponto em que nós não aposentamos a velha república. Precisamos pensar no que fazer para que o país continue próspero, socialmente justo, politicamente democrático culturalmente diverso, ambientalmente sustentável, independente de você. aí saímos da partidarização e da fulanização para a institucionalização das conquistas.

ÉPOCA – O que falta na agenda Brasil?

Marina – Acabar com desvio de impostos que fazem com que 500 mi jovens tirem zero na prova de redação. Mudar uma matriz energética que não aposta nas energias do século 21, usando eólica, biomassa, solar, e que fica gastando dinheiro no megawatt/hora de diesel, de carvão e de gás a R$ 750. Como aceitar que se captem recursos a 11%, 14% e se empreste a 4% de juros para um grupo de ungidos e escolhidos, sem que isso passe pelo Congresso? Precisamos de uma agenda estratégica. Temos um presidencialismo de coalizão que, com duas figuras fortes, o Lula e o Fernando Henrique Cardoso, mascarava sua insuficiência e suas fragilidades. Eles conseguiam que partidos e sociedade gravitassem em torno de grande parte do que almejavam. Com uma pessoa que não vem do mundo da política e não tem sua própria força gravitacional, o presidencialismo de coalizão virou presidencialismo de confusão e agora de desmoralização.

ÉPOCA – A senhora tem seus valores, sua posição de vida e sua religião…

Marina – (interrompendo) – Muitas pessoas têm religião. O Lula tem religião e foi presidente da República. O Fernando Henrique tinha uma religião, não sei se hoje tem, também foi presidente da república.

ÉPOCA – Minha pergunta é se o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, não estaria prestando um desserviço aos evangélicos com sua postura conservadora e a mistura de política com religião, promovendo até cultos na Câmara.

Marina – Existem preconceitos históricos contra evangélicos, contra negros, contra mulheres, contra católicos, dependendo das circunstâncias e da região do mundo. Nunca ninguém me viu instrumentalizando minha religião, nem quando eu era católica nem agora, que sou evangélica. Eu fiquei 16 anos como senadora. Nunca instrumentalizei mas também nunca neguei minha religião. E nunca mudei discurso dependendo da plateia. O que defendo eu digo publicamente para as pessoas poderem escolher se me aceitam ou não. Sobre os cultos, não sei se promovem missas na Câmara. Se o regimento interno não proibir essas manifestações de fé, não vejo mal.

ÉPOCA – Mas o Brasil é um estado laico.

Marina – Sim, mas não podemos confundir um Estado laico com um estado ateu. É laico para defender os direitos de quem crê e quem não crê.

ÉPOCA – A senhora está aliviada por não estar no Senado num momento de crise como o atual?

Marina – Não diria alívio. Fico orgulhosa de o Senado ter respeitado o Supremo Tribunal Federal e ter decidido pelo voto aberto. Eu decidi não ter o terceiro mandato de senadora. Não sou política profissional. É uma escolha minha. Já cumpri minha função no Parlamento. Para mim, política é um serviço. (Época/Globo.com)